Bernardo Monteiro

O sorriso era reservado aos idiotas, ou aos demônios

Publicado em 30/12/2015


Era um povo endemoniado. A sua religião ensinava a sofrer. No trabalho, cada um descobria a dor no seu limite de esforço. No lazer, era preciso seguir regras rígidas para uma diversão digna. No relacionamento de um casal, em um primeiro encontro, as conversas eram avaliadas em minutos de diálogo possível, até que o fim do assunto o sufocasse. Vivia-se um jogo, voluntariamente.


A aproximação entre duas pessoas era um desafio, e o prazer era improvável. O mais importante era não errar. As vidas tinham muitos roteiros desconhecidos, e fingia-se seguir algum, até que alguém descobrisse o embuste. 


A cada minuto de conversa, superava-se uma fase do jogo, e o suor evaporava da pele seca para a atmosfera daquele mundo infernal. Cada pessoa tinha algumas vidas para arriscar. A cada falha que revelasse uma fraude, perdia-se uma vida. Mais cedo ou mais tarde, perdia-se o jogo, e tudo reiniciava: novas vidas, fase zero, nenhum ponto.


Marcar pontos era simples e seguido por elogios irônicos. Muitos dos jogadores pareciam bem treinados para as mais diversas situações, mas as exigências eram tão frequentes que as chances de erro eram altas. As primeiras fases eram as mais difíceis. Surgiam crises antes que se pudesse respirar. Era preciso estar sempre atento para minimizar os riscos e evitar de danos psicológicos a traumatismos cranianos-a cabeça costumava ser o alvo principal. Em um depósito de um estabelecimento de comércio de varejo, em uma ocasião vi um jogador gritar aguda e repentinamente, alertando com pavor para o lançamento de uma lata de 5 kg de óleo em direção à nuca de outro. Quem lançava a lata lançava também o alerta, pois a ética dos jogadores exigia um jogo limpo. Enquanto a lata viajava pelo ar por alguns metros, a vítima foi orbrigada a virar-se, avistar a lata, agarrá-la já a centímetro de seu pescoço, e transformar a tentativa de homicídio em rotina de trabalho, de deslocar e organizar as mercadorias. Pontos para todos. Criar situações de risco era recompensado por pontos, era como dar uma oportunidade ao outro de mostrar suas habilidades.


Só quem perde em um jogo limpo tem a chance de ser humilhado.


Para a maioria, sorrir era perda de tempo. Era inútil e arriscado. Tudo o que não tem propósito dissipa energia, que pode ser empregada em manter vidas por mais um minuto e superar mais uma fase. O sorriso era reservado aos demônios, ou aos idiotas, que não entendiam que era preciso lutar como um demônio para ser mais perfeito que os santos. Era preciso fazer com que as falsas amizades parecessem reais, que as brincadeiras de mau gosto aclarassem as diferenças hierárquicas, e que os falsos sorrisos atraíssem novos desafios. Cada sorriso era um sinal de estupidez. Quem sorria poderia ser um simples idiota ou um demônio-testar essas alternativas podia render muitos pontos, ou custar uma vida. Sorrir era muito perigoso, tanto para o idiota que sorrisse como para os idiotas desafiados pelo sorriso.


Quanto mais se avançava no jogo, mais fácil ele se tornava. Os adversários tornavam-se mais amigáveis e os riscos eram menos frequentes e mais fáceis de superar. 


Porém, cada situação de risco poderia colocar tudo a perder, todos os pontos acumulados sumiriam. Nada de importante acontecia durante horas, ou dias. O jogo se tornava enfadonho, o que, por outro lado, reduzia a humilhação pela perda de vidas, ou pela simples desistência. O suicídio no jogo também tinha seu valor em pontos. Quando alguém deixava definitivamente o jogo, guardava-se seu histórico. Havia uma lista ordenada de campeões. E acreditava-se que a vida real, após a saída do jogo, poderia ser boa, desde que os pontos acumulados rendessem boa classificação.


Na vida após a desistência dos jogos, podia-se agir como idiota. Passava-se a viver entre muitos idiotas, que nunca haviam jogado. Podia-se sorrir e fingir ser um idiota. 


Podia-se fingir ser um demônio e arrancar os sorrisos dos rostos dos idiotas. A vida era menos perigosa, menos entediante, podia-se formar família, ter filhos. Só não era possível voltar aos jogos. As regras mudavam com uma velocidade que lançariam longe qualquer um que tentasse pegar o jogo em movimento. Vivia-se como um bem afortunado, que eventualmente reconhecia na população outros ex-jogadores. Eles se consideravam superiores. Estavam sempre em menor número que os idiotas que nunca haviam jogado, mas não se sentiam ameaçados. O passado de jogos lhes dava uma sensação de segurança, de proteção aos ex-combatentes-sobretudo eram admirados por grande parte da sociedade e respeitados pelos demais.


Havia, porém, os que continuassem nos jogos e nunca desistissem. Esses nunca se entediavam. Sorriam escondido, em algum momento. Depois sorriam de propósito, em público, vários sorrisos: dos idiotas, dos demônios, dos curiosos, dos amantes, dos ingênuos… Seguiam sorrindo de vez em quando, testando sorrisos. 


Mostravam os dentes, ou curvavam os lábios, ou marcavam as rugas, ou brilhavam os olhos… Cada sorriso tinha suas circunstâncias, e suas consequências. Sorrir sempre foi perigoso. "Viver é muito perigoso". "O diabo, na rua, no meio do redemunho", escreveu João Rosa. Mas esses que não sentem tédio, esses querem encontrar o diabo no meio do redemoinho, e lançar-lhe um desafio, um sorriso. Esse jogo continua, e não tem ganhador, mas é muito intenso, até o fim.


É possível ensinar os demônios a sorrirem com alegria, sorrindo antes deles. Mas enquanto os demônios não aprendem, readequa-se a expressão, varia-se a atitude, conversa-se com seus demônios e tenta-se encontrar diversão no redemoinho. Precisando-se de ajuda, pede-se a Deus, mas não se deve contar com Ele. Deixa-se avisado, em todo caso, sobre os conselhos de João Rosa: "Deus, mesmo, se vier, que venha armado". No jogo, a única forma de deter alguém era tirar-lhe uma vida, ou converter um demônio.


Um demônio se converte com atos de compaixão. Palavras ajudam, mas não bastam. Nada obriga à conversão, que é um ato do demônio. O mesmo ocorre com o idiota.


O sorriso pode ser um ato de compaixão se manifestado no momento certo, para a pessoa certa. Isso se aprende no jogo. O sorriso na hora errada ainda é reservado aos demônios e aos idiotas. Eu sorrio muito, certo e errado. Gosto de sorrir. Ainda que alguns vejam demônios ou idiotas em minhas expressões, outros se alegram e sorriem de volta. O sorriso certo é um ato bilateral. O sorriso certo é um ato de confiança recíproca.


– Bernardo Monteiro